Conjuntura & Atualidade | A espetacularização da vida


A vida na pós-modernidade foi afetada em sua gramática simbólica por vários fatores, dentre eles, talvez o mais representativo foi a racionalização da performance individual como valor objetivo. A estética sempre exerceu um papel importante na fundamentação e organização da realidade. A imagem e certos ritos sociais ofereciam a sustentação simbólica para os processos legitimadores da estruturação hierárquica da sociedade. Dos cerimoniais institucionais aos sacramentos religiosos, os ritos sacramentavam e sacralizavam as ações sociais. Um casamento civil por exemplo, oferecia aos nubentes a chancela e a proteção do Estado, a mesma cerimônia, quando realizada também por uma instituição religiosa, era sublimada, revestida de representações subjetivas que transbordavam os desejos e os interesses humanos.

A questão não se pauta no questionamento da ritualização da vida, mas na individualização da gestão desse processo. O mundo do consumo introduziu a ideia da imagem, da performance, como um instrumento de poder, de sedução, de convencimento, etc. No mundo medieval o sujeito precisava “ser” nobre, fidalgo, pertencer a uma nata social para representar o poder, com o advento do capitalismo comercial e industrial o poder se manifestava pelo “ter”, quanto maiores as posses dos sujeitos, maior o poder social conferido a eles. No panorama atual o poder encontra-se tão difuso que a sua legitimação não precisa de um lastro institucional. O exercício do poder foi substituído por uma sensação de poder. No cosmos simbólico contemporâneo, o indivíduo que não “tem” ou não “é”, não entra em colapso social. Há tantos fluxos simbólicos presentes na constituição da cadeia comunicacional da realidade, que o “parecer” ser ou ter oferece uma sustentação mínima para o indivíduo permanecer conectado à rede.

Muitos autores chamam este fenômeno de “consumo emocional”. Antes de lançar um produto, a empresa precisa construir a “alma”, a identidade, a personalidade desse produto. Geralmente, o sucesso ou o fracasso de um novo produto, depende diretamente da competência da campanha de marketing vinculada a ele. As melhores e mais caras mercadorias disponíveis no mercado independem da sua utilidade, mas essencialmente do que elas representam nesse novo imaginário social. Assim, nada é feito para durar, há uma obsolescência planejada, tanto no plano material, quanto simbólico. A dinâmica da vida acaba por se alimentar, como também, retroalimenta a indústria da fantasia humana. Nesse novo ambiente humano todas as nossas demandas e necessidades são supridas pelo mercado. O Google observa diuturnamente não somente o nosso trânsito na Internet, faz um mapeamento dos nossos desejos instintuais. Essa onisciência universal faz com que as tendências não falhem nunca. Tudo o que colocam nas prateleiras absorvemos ansiosamente, consumimos e provemos necessidades as quais desconhecemos as suas origens.

A “pirataria” é um efeito colateral dessa virtualidade existencial, quando digo pirataria, não me refiro unicamente às cópias não autorizadas de mercadorias, me refiro também, ao espelhamento humano a modelos humanamente artificiais. Com a “liquefação” das instituições, que por sua vez, deslegitimaram a sustentação simbólica das grandes narrativas humanas, a vida para além da vida se tornou um conto de fadas. A consequência inevitável desse processo é um aprisionamento ao campo material. Dessa forma, sem termos para onde ir, precisamos focar no imediatismo da vida, viver no agora, gozar a qualquer custo. Como não há possibilidade de “paraísos” para todos no mundo material, uma parte significativa da vida passou a ser elaborada no campo imaginário. Dessa forma, a indústria das mercadorias simbólicas exige cada vez mais criatividade dos novos “proletários” pós-modernos no sentido de oferecimento de novos estímulos e sensações individuais, estéticas e virtuais.

Aquele velho adágio popular “diga-me com quem tu andas, que direi quem tu és” caiu em total desuso. Essa expressão era a síntese de uma socialização que não existe mais. A vida ganhava corpo, vida e sentido na comunidade. Karl Marx produziu uma reflexão que “tudo aquilo que se pede a Deus na igreja, falta na comunidade”. Hoje as igrejas se transformaram em verdadeiros espaços de entretenimento, cujos espetáculos oferecidos levam os seus frequentadores ao êxtase. Numa perspectiva de prosperidade, cura e satisfação afetiva, as igrejas se especializaram no atendimento exigente da sua clientela corroborando o hedonismo existencial.

Quando Nietzsche disse “Deus está morto”, fazia uma leitura de que as respostas racionais ofereceriam a plausibilidade necessária à vida. Hoje, Deus foi ressuscitado como uma substância essencial para sacralização do consumo. Seja fazendo uma “self”, no louvor, no shopping, na marcha de protesto ou dormindo suave acolhido pelo Rivotril, tudo faz parte de uma cena, de um enredo, de um setting dirigido por interesses corporativos desterritorializados, que nos transformaram em meros figurantes no teatro humano.


Paulo Passos é graduado em Ciências Sociais, mestre em Ciência Política, doutor em Ciências da Religião e professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

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