Conjuntura & Atualidade | O Carnaval e suas novas representações simbólicas

O Carnaval compreende uma das maiores festas populares do mundo. A palavra carnaval é originária do latim, carnis levale, que significa retirada da carne ou distanciamento da carne. O carnaval foi a sistematização por parte da Igreja Católica de inúmeras manifestações oriundas do paganismo. O Carnaval foi incorporado ao calendário religioso, exatamente para referenciar a Quaresma, momento de reflexão e penitência do corpo. A mística do Carnaval orientava a dualidade entre o sagrado e o profano, a dimensão do corpo e do espírito, daquilo que é próprio da existência e da transcendência. A narrativa religiosa precisava reconhecer a profanidade da vida, para que o seu contrário também fosse factível. Assim, o carnaval compunha pedagogicamente, um dos elementos constitutivos da cosmologia religiosa do mundo ocidental.

Com o definhamento institucional do campo religioso em direcionar as ações humanas, a cada dia que se passa, as representações que outrora sustentavam os alicerces da realidade adquirem novos significados. O Carnaval, seguramente não ficou imune a este processo. As próprias instituições religiosas abdicaram do Carnaval e da mística religiosa que o revestia. Incorporaram um discurso que somente dão visibilidade ao caráter profano e espiritualmente indigno dessa festa. Muitas instituições religiosas fazem o seu próprio Carnaval. Organizam um conjunto de atividades visando distanciar os indivíduos das ameaças dos desejos mundanos. Todavia, essa estratégia não contribui para o fortalecimento ou resgate da mística religiosa do Carnaval. Essa posição retira o contraponto do universo religioso, que é exatamente aquilo que seduziria enganosamente o espírito. A contraposição ao carnaval com outro carnaval, evidencia uma preocupação maior em concorrer com o profano, do que efetivamente glorificar o sagrado.

Sem a dualidade para balizar a esfera do que é do mundo, daquela que está para além do mundo, tudo se resume ao hedonismo. Nesse sentido, o Carnaval justifica que os prazeres do mundo são legítimos, necessários e imprescindíveis na significação da vida. Sem a antítese da culpa pelo regozijo do corpo, se confirma a lógica do aqui e agora. O Carnaval desmistificado da sua aura profana, atua como uma doutrina sacralizadora das fruições da vida material. As representações do “mal” não desapareceram do mundo contemporâneo. Entretanto, o “mal”, outrora tipificado como uma ação do mundo espiritual sobre o mundo humano, foi esvaziado dessas representações. Hoje, a faceta do mal é tão difusa quanto os estímulos de consumo e prazeres não saciados pelos indivíduos.

Já que o Carnaval não pavimenta mais o caminho para o período de resignação do corpo e lapidação do espírito, suas representações assumem outros contornos e funções dentro dessa nova realidade social. Enquanto feriado, sem nenhum lastro religioso, esta data não tem mais como propósito a reflexão do plano mundano, mas essencialmente, um estímulo ao excesso. O Carnaval reitera o quanto podemos ser felizes e completos ao associarmos as pulsões dos nossos corpos com o plano do imaginário e da fantasia. Em relação a realidade simbólica da vida, o Carnaval produz um efeito catártico extraordinário. Revestido pela legitimidade acrítica da folia, todos os descontentamentos da vida cotidiana política e econômica são reverberados no plano lúdico. É uma manifestação na qual os “mascarados” baderneiros não são admoestados ou combatidos pela polícia, são protegidos pela mesma.

Embalados pelas letras das “marchinhas” que falam mal de muitos, mas não afetam ninguém, o carnaval só tem a pecha de festa popular. Tornou-se um espaço de exaltação e ostentação das promessas de completude pela via do mundo e do corpo. Em nome da cultura, do folclore e, até mesmo da espiritualidade do povo, grandes marcas de cerveja, bancos e automóveis, se imbricam no plano imaterial da nossa identidade, redimensionando a nossa relação subjetiva com a vida. O Carnaval deixou de ser uma festa, passou a representar uma grande manifestação de louvor ao reencantado mundo hedonista.


Paulo Passos é graduado em Ciências Sociais, mestre em Ciência Política, doutor em Ciências da Religião e professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

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