ARTIGO Não há razão para se acabar com o Quinto Constitucional

* Délio Lins e Silva Jr.

O persistente esforço que sugere o desprestígio da atividade advocatícia em nosso país ganhou um novo e lamentável episódio: a ANAMAGES, Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, iniciou campanha para abolir a regra do quinto constitucional. Trata-se de dispositivo previsto desde a Carta Magna de 1934, segundo o qual 20% das vagas de magistrados dos Tribunais recursais são reservadas a profissionais egressos da advocacia e do Ministério Público.

Sob o argumento de que há um desvirtuamento da natureza do instituto do quinto em decorrência da maneira como vem sendo conduzido o processo de indicações, a associação de magistrados descortina seu objetivo precípuo de extirpar do Judiciário os julgadores que, na sua visão, não teriam aptidão testada por um concurso público de ingresso. Ou seja, os magistrados provenientes da advocacia.

Em princípio, os argumentos defendidos pela associação parecem fortes e ganharam ainda mais apelo após o episódio envolvendo a determinação de soltura do ex-Presidente Lula por um magistrado egresso do quinto constitucional. Há quem diga, inclusive, que o momento para a deflagração da campanha tenha sido influenciado diretamente por esse episódio.

O processo do ex-Presidente talvez seja o que ofereça maior clamor popular entre os que hoje tramitam em nosso Judiciário. Ademais, pela circunstância de ter propiciado um embate entre decisões proferidas por um juiz concursado e outro oriundo do quinto constitucional, serviu de veículo para criação de ambiente favorável ao início do debate da questão pela associação.

Entretanto, como qualquer contenda que sugira uma modificação constitucional, a discussão sobre a manutenção do quinto deve ser realizada em ambiente desapaixonado, sob pena de se desenvolver em uma ótica eminentemente corporativa ou de ser subjugada aos interesses imediatos dos atores envolvidos em uma disputa por espaço de atuação.

A escolha através da sistemática do quinto possui status constitucional desde quando foi acrescido à nossa Carta Magna, a partir de experiências exitosas no âmbito internacional, especialmente no direito italiano.

A ideia central é que a atividade judicial perceba um acréscimo qualitativo a partir da aplicação nas decisões da experiência e da visão obtidas pelos membros do Ministério Público e pelos advogados em suas carreiras. Nesse cenário, a jurisprudência seria construída de forma mais oxigenada e a cidadania estaria mais representada nas decisões, em função do diálogo entre as diferentes experiências jurídicas.

Todavia, considerando que, em tese, o quinto constitucional traga tantas vantagens à construção jurisprudencial, para que se entenda a crítica da associação há que se analisar todo o contexto da sociedade brasileira e sua relação com o momento que atravessa o poder Judiciário.

Como ponto de partida para a análise dessa questão, vale registrar que a sociedade brasileira atravessa um período de absoluto desgaste de suas instituições. Os seguidos escândalos de corrupção descortinados em todas as esferas de poder da República (atingindo especialmente a classe política), a sobreposição de interesses corporativos que travam e ou influenciam a análise de pautas fundamentais para a sociedade no âmbito do poder Legislativo, e a ausência de previsibilidade, planejamento e controle das ações do poder Executivo fazem com que nossa sociedade atravesse um período de baixa estima, que é ainda agravado pela ausência de lideranças emergentes.

Por seu turno, o poder Judiciário também enfrenta seus dilemas e questionamentos. A partir do televisionamento dos julgamentos e ampliação das ferramentas de comunicação dos Tribunais, a população passou a acompanhar de perto as decisões judiciais. Mesmo os que acreditam que o televisionamento de julgamentos possibilite a democratização do acesso à informação, identificam que os julgadores são pressionados pela dita “opinião pública”. A pressão social sobre os juízes advém justamente da errônea ideia de que o julgamento é formado apenas pelo livre convencimento.

E é justamente esse ponto que deve orientar o debate sobre a questão do quinto constitucional. A opinião da associação de juízes, amparada pela impressão popular de que o julgador seja absolutamente livre para decidir, está baseada na premissa equivocada de que a decisão judicial se qualificaria justa a partir da legitimidade do julgador, existente em função da comprovação que detém os habilitados por concurso público.

Ora, ainda que a decisão judicial decorra de um exercício de interpretação da norma e do enquadramento dos fatos jurídicos às hipóteses normativas, a aplicação do direito está adstrita a métodos que tornam controláveis as contingências e as incertezas na prolação das decisões.

É a técnica jurídica que empresta consistência às decisões. Portanto, o julgador não é livre para julgar apenas com sua opinião ou seu sentimento. Pelo contrário, até por imposição da prévia iniciativa das partes na formação da relação processual, o juízo está obrigado a julgar de acordo com ditames que assegurem a segurança jurídica, o respeito à norma e à isonomia de tratamento aos jurisdicionados. As decisões são construídas a partir do exercício do contraditório processual e resultam da regular interação dos diversos atores processuais, todos adstritos a regras de controle.

Não há razão para desprestigiar o quinto constitucional, que tanto serve ao aprimoramento do aparelho judicial. Entretanto, em face da envergadura dessa discussão, cabe a OAB buscar aperfeiçoar os critérios eleitorais a partir da utilização de ferramentas que afastem qualquer dúvida sobre a idoneidade na escolha dos candidatos.

Para nós, isso implica fundamentalmente a escolha via eleição direta para as vagas do quinto constitucional. Com uma lista de nomes que represente e respeite a escolha efetiva da classe. Num sistema transparente, que não dê margem a critérios políticos.

 (*) Délio Lins e Silva Jr. é Advogado criminalista, ex-Conselheiro da OAB-DF, Mestre em Ciências  Criminais e Pós-Graduado em Direito Penal Econômico, ambos pela Faculdade de Direito de Coimbra-Portugal.

 

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