Conjuntura & Atualidade | A Terceirização da Infância

No mundo contemporâneo, uma boa parte das crianças ficam aos cuidados de terceiros. As funções parentais, sobretudo a materna, sofreram forte apelo do mercado para sua reformulação. A figura da mãe foi gradativamente sendo desqualificada enquanto provedora dos estímulos necessários na preparação da vida do filho para o mundo social. Se compararmos o cardápio dos serviços pedagógicos oferecidos pelas boas escolas particulares, com o âmbito doméstico, uma verdadeira profissionalização dos cuidados e das afetividades básicas destinadas as crianças se tornaram serviços ou mercadorias. Do aleitamento ao desfraldamento da criança, surgiram técnicas e protocolos apropriados a cada fase. Cada vez com mais frequência, vende-se a ideia de que, o negligenciamento dessas etapas podem afetar ou impactar profundamente a infância de uma criança.

Na concepção Winnicott, estudioso do mundo psíquico infantil, a relação da mãe com a criança não se constitui em meros cuidados ou manutenção da saúde orgânica do filho. Na perspectiva desse autor, a capacidade da criança se relacionar afetivamente com outras pessoas está diretamente condicionada à afetividade recebida pela mãe. Poderíamos traduzir esta questão, afirmando que, a dimensão da nossa capacidade de amar, depende do quanto de amor recebemos dos nossos pais, especialmente da mãe.

A emancipação das mulheres as condicionaram a disputar com os homens os espaços públicos do mundo do trabalho. Assim, o modelo da educação infantil iniciada e consolidada pelas mães foi gradativamente sendo transferido para outras pessoas. O período de licença maternidade, instituído como o mínimo necessário para a integridade da criança, nem de longe compreende com a verdade. Ao invés de criar um vínculo duradouro e efetivo na relação mãe e filho, o tempo estabelecido visa meramente imunizar organicamente a criança na perspectiva de redução dos custos estatais. O período mais significativo da vida do ser humano é o da sua inserção no mundo da linguagem. Toda a rede de proteção e afetividade envolta na relação do filho com a mãe e vice-versa, ordena e estrutura o campo significante, que recepcionará toda a significação da criança em relação a si própria e o outro. Ou seja, antes do significado há o significante, antes do conceito há um molde subjetivo que, sem o qual, nada seria o que é, se ele não fosse.

A transferência dos cuidados e afetos para as instituições de ensino ou creches, jamais suprirão na criança as suas reais demandas e desejos. Enquanto nesses ambientes, todo o formato é planejado para institucionalizar e rotinizar o cotidiano da criança, em casa o processo se dá pelos vínculos de pertença e identidade. O espaço familiar é o ambiente afetivo perfeito para que a criança se descubra como sujeito. Sob a proteção e o não julgamento da família, este espaço se transforma em um cosmos lúdico/imaginário no qual a criança processa todos os ensaios necessários para a sua inserção no mundo social. Quando essa dramatização psíquica não oferece as condições necessárias a autonomização subjetiva da criança, ou seja, ter compreensão e segurança do seu lugar, das suas virtudes e limitações, viver em grupo e na maioria das vezes, consigo mesmo, pode se tornar uma jornada inglória.

Com a instrumentalização da vida, passamos a valorizar e a buscar maneiras e formas de ocuparmos e organizarmos o nosso espaço no mundo das coisas. Assim, a escolarização é sugerida como o caminho natural para a emancipação do indivíduo. O problema desse modelo escolar aplicado à primeira infância é que ele é apenas disciplinador, mas não estruturante e emancipador. No campo das estruturas psíquicas o processo emancipatório de uma criança em relação aos seus pais é pavimentado essencialmente pela afetividade manifesta por eles. Sem essa afetividade mediadora a criança aprende a se relacionar com o mundo a partir das intervenções do próprio mundo. O movimento de maturação deveria ocorrer no sentido inverso, de dentro pra fora, na medida em que a criança fosse se sentido segura e autoconfiante para avançar, gradativamente engendraria o seu caminho rumo ao espaço coletivo.

Com a terceirização da infância, o elo afetivo entre pais e filhos foi afetado em sua gramática simbólica. A hierarquia dos pais sobre os filhos se alicerçava em fundações cimentadas por uma densa e poderosa massa de afeto, proteção e amor. Essa estrutura encontra-se fragilizada. Serviços e produtos foram inseridos como mediadores dessas relações. Dessa forma, os pais não conseguem mais conversar com os seus filhos fora desse cardápio. Pra tudo que se espera dos filhos atualmente, tem uma mercadoria apropriada à sua consecução. Se o mundo contemporâneo obriga os pais a terceirizarem os seus filhos, essa mesma lógica se aplicará aos pais no futuro. Nesse cenário, o núcleo familiar compreende apenas um refúgio material para a criança, até que ela se autonomize para o mercado.


Paulo Passos é graduado em Ciências Sociais, mestre em Ciência Política, doutor em Ciências da Religião e professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

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