Em defesa de uma Intervenção Constitucional

Para o ilustre jurista alemão Konrad Hesse, a força normativa de uma Constituição depende daquilo que se definiu como vontade de constituição, implicando numa responsabilidade daqueles que exercem as diferentes parcelas do poder Estatal de fortalecimento dos princípios e regramentos constitucionais pela submissão racional aos ditames desta norma-matriz.

A hoje baixíssima estabilidade institucional brasileira, na qual são os ventos momentâneos quem moldam o conteúdo material das normas definidoras da estrutura e limitadoras do poder Estatal – característica marcante de uma sociedade que ainda não aprendeu o valor de uma ordem normativa que sirva de proteção contra o arbítrio desmedido –, ajuda a explicar a naturalidade com a qual um integrante do Alto Comando expressa, em tom muito próximo ao de ameaça, um entendimento sem o mais remoto fundamento na Carta de 1988, segundo o qual, caso o Judiciário não resolva a crise política afastando da vida pública todos os envolvidos em atos ilícitos, caberia às Forças Armadas “intervir” para “impor isso”.

Essa busca frequente por atalhos fora do texto constitucional, quando um dos poderes constituídos, ou outra instituição do Estado, age como se fosse ele próprio o poder constituinte e se arvora de atribuições que não as conferidas pela Carta das Competências, retira da Constituição sua força normativa e abre espaço para toda sorte de interpretações criativas, mesmo as mais heterodoxas e distantes do conteúdo da norma escrita, dentre as quais esta absurda e antidemocrática visão que preleciona terem os militares um “mandato para intervir”, por conta própria, contrariando a disposição expressa que lhes subordina à autoridade suprema do presidente da república.

Não diferem muito dos “intervencionistas”, quanto ao desrespeito aos limites constitucionalmente estabelecidos, os magistrados que – conhecedores das leis que são – reiteradamente tem proferido decisões, violando a autonomia dos demais poderes, fundadas tão somente em prerrogativas autoconferidas. A Constituição precisa subordinar também aqueles a quem cabe dizer o direito.

As ordens judiciais que negam eficácia às garantias e imunidades parlamentares – e do próprio presidente da república -, a revisão dos critérios para a sucessão do Chefe de Estado sem que o poder judiciário detenha tal competência, a redefinição sem legitimidade constitucional das normas para a aquisição do exercício do poder estatal – incluindo a “verticalização”, a perda de mandato por infidelidade partidária, a proibição de doações empresariais, o recente debate sobre candidaturas avulsas e todas as demais alterações no sistema eleitoral à revelia da representação escolhida pelo conjunto da sociedade -, são todos sintomas de uma deturpação da função jurisdicional, direcionada para a consolidação de um Poder Moderador no Brasil, de viés tão antidemocrático e liberticida quanto a deturpação de conceitos como “defesa da pátria” e “garantia da ordem” que podem inspirar movimentos de usurpação, pelos militares, dos poderes constitucionais cujo seu contingente e arsenal deveriam estar destinados a garantir.

Recentemente, a apreciação judicial de questões relacionadas ao aborto deixou nítido o fato de que, no Brasil, nem mesmo o mais fundamental dos direitos – o direito à vida – se encontra assegurado pela Constituição, estando também este sujeito às frequentes mudanças de humor dos tribunais.

A persecução penal com base não na pena legalmente cominada e no devido processo legal, mas em Medidas Contra a Corrupção propostas por membros do ministério público que – mesmo não estando em vigor -, no juízo particular desta corporação, já deveriam ter sido aprovadas, é outra violação de garantias constitucionais que precisa ser encarada pela sociedade com mais cautela. O argumento que defende serem estas “transgressões positivas”, necessárias no combate à corrupção e à impunidade – quase a advogar em favor de uma “função social” destas violações das garantias e das liberdades individuais -, guarda estreita relação com os que largamente empregados por aqueles que defendem tanques nas ruas e um governante não eleito, ostentando as divisas de general, como único caminho para o enfrentamento à criminalidade e para assegurar um “choque de legalidade” na política nacional.

Também caminha no sentido inverso da democracia o positivismo seletivo, que faz parecer que é a política econômica quem condiciona a eficácia das disposições constitucionais e não o inverso, na medida em que desconsidera a carga normativa, por exemplo, de princípios expressos no texto da Constituição.

Quer sua motivação esteja à esquerda ou à direita do espectro político, para adotar medidas de viés liberal ou estatizante, seja em nome da “liberdade” ou da “igualdade”, sempre que um governante eleito democraticamente decide ignorar direitos, garantias e limitações de natureza constitucional, por considerá-los meros empecilhos para a implementação de sua agenda política ou econômica, quem sai perdendo é o regime republicano e o Estado Democrático e de Direito.

A perda da percepção de representatividade em relação ao Congresso, consequência de uma atuação de seus membros cada vez menos conectada com os anseios e as expectativas daqueles que os elegeram, tem culminado em um legislativo sem autoridade moral – e, consequentemente, política – para zelar pelo espaço que lhe é próprio numa democracia, ainda que diante dos mais flagrantes ativismos e abusos legiferantes que temos presenciado.

Esse esvaziamento na legitimidade do parlamento é preocupante, pois, historicamente, a alternativa aos embates de ideias e aos debates, muitas vezes duros, promovidos pela representação legislativa dos diversos setores da sociedade, tem sido a imposição autoritária das decisões de governantes – cujas ações quase sempre são movidas pelo tom messiânico ou pela convicção cega de quem chega a decretar “O Fim da História” – que encontram pouca ou nenhuma limitação no exercício do poder.

Mesmo sem perceber, quando aqueles a quem, numa democracia, cabe exercer funções públicas e os poderes do Estado, desconsideram as limitações constitucionais e legais que lhes são impostas, tornam-se eles próprios os algozes da base institucional na qual se sustenta sua legitimidade. Esse ambiente de baixo nível de confiança na classe política e nos institutos da democracia são o habitat natural de toda sorte de oportunistas que, munidos de bandeiras vermelhas ou vestindo uniforme e coturno, apressam-se em apregoar a via não-democrática como sendo a solução simples e fácil para todos os problemas complexos que atingem a sociedade.

O Brasil precisa de uma Intervenção Constitucional, mas não a que pregam aqueles que buscam corromper os mecanismos de defesa do Estado de Direito e das instituições democráticas em instrumentos de um eventual governo autoritário, cuja legitimidade repousaria exclusivamente num efetivo de tanques e homens armados na ruas. Esta, antidemocrática, nada tem de “constitucional”, visto que a Constituição Cidadã não legitima a hipótese da sociedade civil ser tomada como refém pelo seu braço armado.

A verdadeira intervenção – esta sim, de natureza constitucional – que se faz necessária é aquela que, operada por uma sociedade não mais disposta à apatia diante do teatro do absurdo em que se converteu a cena política nacional, promova um verdadeiro freio de arrumação no sistema de check and balances, pressionando as instituições republicanas a cumprirem o papel a que estão obrigadas, dentro das limitações que lhe são impostas pela democracia. Uma intervenção que confira força normativa à Constituição suficiente para assegurar máxima efetividade ao princípio segundo o qual todo o poder emana do povo.

Especialista em orçamento e políticas públicas, diretor de relações governamentais da Associação Nacional do Transportador e dos Usuários de Estradas, Rodovias e Ferrovias (ANTUERF), secretário-executivo da União Geral dos Trabalhadores (UGT) e membro do Secretariado Nacional de Relações Trabalhistas e Sindical do PSDB.

1 Comment on "Em defesa de uma Intervenção Constitucional"

  1. O maior vício no Brasil é a roubalheira, a mentira, a corrupção e não é com conversa fiada, com teorias de gente metida a entender as coisas que vai se resolver a situação caótica em que se encontramos. O que precisa mesmo sim é usar das forças mecânicas e institucionais (Exército) e agir dentro da Legalidade, na Observância das Leis. Identificando, julgando, enjaulando os malfeitores e devolvendo e protegendo os direitos constitucionais a todos os brasileiros.

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