Marco Antônio Pontes | Apesar de tudo, tudo o que fizemos…

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes – [email protected]


Cansaço,…

Permita, leitor, que lhe fale de cansaço.

Sim, eu sei que espera do colunista o exame dos problemas que o afligem e a crítica de sua abordagem na imprensa, sobretudo no concernente à política, nesta quadra em que política e políticos figurariam melhor nas seções policiais dos jornais.

Mas cansa este velho jornalista constatar que passado o mensalão, adiantada a Operação Lava a Jato persistam os vícios e os políticos pareçam viver noutro mundo.

…revolta…

Fique claro, leitor: como você, este jornalista revolta-se com a desfaçatez geral: o presidente da República recebe clandestinamente em casa um empresário pra lá de enrolado, o Pt escolhe para presidi-lo uma senadora processada por corrupção, um deputado chegado ao poder é flagrado a correr na rua com mala cheia de dinheiro… – seria cômico, se não fosse trágico.

…e fuga

Isso cansa, o leitor concordará. Mas antes de desistir leia o artigo A pinguela, do jornalista e professor Aylé Selassié Quintão ([email protected]).

Ele começa por inusitada provocação – Os black blocs expressam o estado de espírito da população brasileira” – mas longe de justificá-los, exibe-lhes a equivocada e grosseira encarnação da revolta.

Leia Aylé, leitor, e depois fuja comigo para assunto mais ameno: a música popular, especialmente a brasileira, nosso orgulho e consolo.

Cabeças sabidas

Ainda uma nota antes de fugir, leitor. Veja o que ouvi de um amigo sobre o inusitado (em mais de um sentido) julgamento no Tse:

– Dizem que de cabeça de juiz nunca se sabe o que vai sair. Pois dessa vez se soube; de sete juízes.

Seresteiro do céu

            “Quando Expedito Baracho pegar o violão e começar a cantar, nunca mais [os anjos] quererão saber das harpas” – escreveu Marcelo Alcoforado (A propósito, O silêncio do cantor, 28.05.2017) na suave elegia dedicada ao grande seresteiro do Recife (potiguar de nascimento) que nos deixara no sábado, 27 e o cronista imaginava-lhe a chegada ao céu.

Seresteiro do céu (II)

Uma única vez assisti, de corpo presente, às ricas interpretações de Baracho, a que fora apresentado em um lp (ou vinil, como chamam hoje) e precárias gravações em fitas cassete.

Foi o bastante: acreditasse no paraíso, eu tentaria merecê-lo só para assistir às serenatas com que o cantor encantará os anjos. Ele e seus pares: Orlando Silva, Francisco Alves, Carlos Galhardo, Vicente Celestino, Sílvio Caldas…

É Ella!

Ella Fitzgerald, ‘a primeira-dama da canção’, teria completado cem anos em abril. A imprensa prestou-lhe devidas homenagens.

Destaco excelente matéria da GloboNews (Em pauta, 25.04): Roberto Pontual recordou o deleite de ouvi-la em Nova Iorque, anos 1960 e Eliane Catanhede informou que Amy Winehouse dissera escutá-la todos os dias.

De quebra, excertos de interpretações magistrais de Cry me a river e Summertime; só pequenos trechos; que pena!

Melhor entre melhores

Também conheci o cancioneiro estadunidense dos anos 1930–60 naquela privilegiada voz – e mais (entre outras) as de Billie Holiday, Frank Sinatra, Nat King Cole, Sarah Vaughan.

Seus song books, como o de Cole Porter, reuniram o melhor da música popular de todos os tempos e povos, à altura da que se fez aqui, no Brasil – e Ella Fitzgerald brindou-nos com um ‘disco duplo’ de Tom Jobim: honra a ambos.

Contraditória Amy

A propósito de Amy Winehouse: sua admiração por dame Fitzgerald confirma a sensibilidade que revelou na curta carreira e acrescenta frustração à tristeza por deixar-nos tão jovem – o que mais?, e tão melhor não cantaria?

Hoje me penitencio do mau-humor com que registrei sua morte, porém reafirmo o conteúdo: a excelente cantora tentou cantar mal, era linda e quis enfear-se, escolheu repertório aquém de sua cultura musical.

Belchior esquecido

Belchior precisou morrer para que seu talento fosse reconhecido. Esqueceram-no os jornais, revistas e, pior, as emissoras de rádio e tv que lhe haveriam de programar as canções.

Não teve melhor acolhida nas redes sociais, via internet, mas ali pelo menos podem-se encontrar reproduções de suas obras – entretanto só procuradas por raros iniciados ou saudosos de melhores tempos, como este colunista.

Tempos de surdez

Não foi o único esquecido, o bravo compositor cearense. Muita gente boa da mpb perde espaço para a mediocridade.

Está aí a degeneração do samba num popularesco ‘pagode’ (impropriedade até semântica), o cancioneiro rural que de tão desenraizado desembocou em anômalo ‘sertanejo’ dito ‘universitário’ (?), o atual ‘rock brasileiro’ cuja sensaboria desmerece pioneiros talentosos, a malversação de novos ritmos urbanos (funk, rap), fruto da criatividade das periferias geográficas e sociais, que escorrega no preconceito e derrapa na grosseria…

Tempo de lembrar,…

Mas é bom lembrar Belchior. Eu vivi os duros tempos que ele cantou em Como nossos pais, cujo versos e estrofes resgatam episódios e revisitam a história da minha geração.

É uma história de esperanças e frustrações – mais dessas que daquelas – mas o poeta aposta na vida: “Viver é melhor que sonhar / e eu sei que o amor é uma coisa boa, […] / mas qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”.

…desesperar , resistir,…

Belchior enfrenta a dura realidade: “Cuidado!, há perigo na esquina: / eles venceram e o sinal está fechado pra nós, / que somos jovens, / para abraçar meu irmão e beijar minha menina, na rua […].”

Resiste, porém: […] Eu vou ficar nesta cidade, / não vou voltar pro sertão, pois sinto vir vindo no vento / o cheiro da nova estação […], mesmo que deva senti-lo “na ferida viva do coração”.

… duvidar, crer de novo…

A resistência é débil, porém. O poeta invectiva o interlocutor (a amada?, o velho companheiro de lutas?):

            “Nossos ídolos ainda são os mesmos, / […] você diz que depois deles não apareceu ninguém, / […] mas é você que ama o passado e não vê / que o novo sempre vem!”

…e chegar à síntese

Sofrida embora, a dialética de Belchior chega a admirável síntese:

“Hoje eu sei que quem me deu a ideia / de uma nova e consciência e juventude / está em casa, guardado por Deus!, / contando o vil metal.”

E termina desiludido: “Apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos / ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.”

Perversa síntese

Eu não queria, leitor, mas é inevitável: a dramática conclusão do poeta traz-nos de volta a estes tempos infaustos.

Fizemos tanto! – ‘Diretas, Já!’, redemocratização com Tancredo, Constituição Cidadã, Plano Real, redução da pobreza – e ainda vivemos como os antepassados escravistas?!, a evocar Deus e contabilizar a vil riqueza de poucos à custa da miséria de muitos?

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