Marco Antônio Pontes | Estado confessional – é isso mesmo que queremos?

Tributo a Octavio Malta  (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes – [email protected]


Estado confessional

Desde terça-feira passada o Brasil é um estado confessional, análogo àquele Afeganistão dos talibãs. Vá lá: será multiconfessional, a distanciar-se um pouco da barbárie; pálido consolo.

Custa crer que o Supremo Tribunal Federal haja respaldado tamanho retrocesso, mas aconteceu. Ao decidir sobre o ensino de religião em escolas públicas, uma apertadíssima maioria (seis versus cinco ministros) permitiu que ele tenha caráter confessional.

Verdade absoluta

Quer dizer: agora um professor católico está autorizado a transmitir aos alunos sua convicção de que os dogmas da igreja de Roma são verdade absoluta. Por exemplo, discorrer sobre a virgindade de Maria, conjeturar do ‘mistério’ da Santíssima Trindade, garantir a infalibilidade do Papa.

Numa escola vizinha seu colega evangélico pode até compartilhar-lhe visões provavelmente ortodoxas de repúdio à homossexualidade, à diversidade de gênero, ao ‘casamento gay’… e simultaneamente renegar o ‘politeísmo’ do culto a Maria e aos santos.

Confusão pra ninguém botar defeito.

Ameaça presente

Haverá de ser pior. Se o Stf não revogou a diversidade de crenças – apenas (?!) permitiu obrigar, no mínimo induzir que se creia –, pode-se imaginar que em algum lugar no Brasil, em escola mantida pelo estado, um tresloucado xeique proclame ‘morte aos infiéis!’, conforme enviesada concepção do Islã.

E não falo de hipótese remota, improvável, tem ocorrido coisa parecida, como os seguidos ataques a templos de cultos afro-brasileiros, ordenados por ‘pastores’ fundamental-neopentecostais que mandam, simples assim, destruir a casa do Capeta e exterminar seus seguidores.

Pretexto religioso

Claro, leitor: estou a conjeturar do que pode acontecer, não afirmo que fatalmente ocorrerá – embora a intolerância já assuma formas violentas como na citada perseguição à umbanda, ao candomblé e cultos congêneres.

Parece-me, entretanto, que bastam a ameaça e a demonstração de como pode concretizar-se para que não se deixe raia livre a manifestações de intolerância e autoritarismo, sob pretexto de ensinar religião.

Livre escolha

À parte e além de razões práticas, porém, a objeção ao proselitismo religioso em escolas públicas é conceitual. Antes de propor ao leitor alguns desses conceitos, tento estabelecer os fatos sob os quais se discute a questão.

Nossa Constituição estabelece que o estado brasileiro é laico e isso significa que não impõe ou favorece uma dada fé nem obriga, sequer sugere que se adote alguma religião. A cada cidadão a Carta de 1988 assegura livre arbítrio quanto a crer ou não em mundos, vidas e entidades imateriais e coerentemente, aos que creem, escolher que consequência dar à fé e filiar-se (ou não) a alguma religião.

Maioria religiosa

Também é fato e consta do mais recente recenseamento do Ibge, o de 2010 que a maioria da população adota uma religião. A informação refere-se, destaco, a maioria, não totalidade; cerca de 8% dos brasileiros declararam-se ‘sem religião’, o que (suponho) inclui agnósticos, ateus e os que recusam religiões mas creem em Deus ou em alguma entidade imaterial, superior.

De todos, para todos

Outro fato a constatar é que a educação pública, como os demais serviços prestados pelo estado, é custeada pelos impostos que todos pagamos e deve atender universalmente a gnósticos e agnósticos, em estrito respeito às respectivas opiniões, necessidades, interesses – não importa se maioria ou minoria, todos fazem jus a direitos.

Pública = de todos

Decorrência do exposto – e aqui inicio a consideração de conceitos que informam a objeção do decidido no Stf – é que a escola pública, por definição pertencente à sociedade, não pode abrigar práticas recusadas por parcelas (mesmo minoritárias) do corpo social. Cabe aqui menção a preceito basilar do estado de direito: a democracia afirma-se primeiro ao garantir os direitos das minorias.

Sem compromisso

Assim a educação pública não pode incluir o ensino religioso, qualquer que seja, na grade curricular. Os gnósticos (os que creem) podem até admitir que se ensinem, além da própria, outras religiões; louve-se-lhes o intuito igualitário mas recuse-se in limine o compromisso: ele desrespeita os direitos dos agnósticos.

Dito de outra forma: os que não têm a religião, a fé, o misticismo entre suas conjeturas não devem obrigar-se a admitir, quanto a mais participar do custeio de atividades confessionais em instituições públicas.

Definindo categorias

Talvez seja útil esclarecer categorias e precisar significados de conceitos ora citados.

Nas visões de mundo (e de outros mundos, para quem neles crê) que têm a ver com aceitação ou recusa da religião, identificam-se duas posições antagônicas: de um lado os que acreditam em Deus, em tudo o que decorre dessa crença e explicam o mundo conforme tal visão – questão de fé; de outro os que prescindem da fé neste contexto.

Os primeiros são denominados gnósticos (= os que creem); os segundos, por oposição, agnósticos.

Agnósticos, ateus…

Entre os primeiros encontram-se os seguidores das diversas religiões e também os que as refutam porém acreditam em algo imaterial, místico: Deus, a natureza, a ordem universal dos astros.

O grupo dos agnósticos, além do diversificado conjunto dos que sequer cogitam de algo além do mundo físico, elucidado e comprovado pela ciência, comporta ainda uma derivação: a dos ateus, os que negam a existência de Deus e não raro assumem militância contra a ideia e o que dela decorre.

Outro contexto

Se puder concluir alguma coisa destas lucubrações, direi que o Supremo Tribunal Federal sequer deveria discutir a natureza, qualidade e limites do ensino de religião na escola pública. Haveria de excluir de pronto a questão e instituir que a escola do estado nem mesmo pode abrigar a religião entre suas disciplinas, obrigatórias ou não.

Deve, sim, a religião frequentar transversalmente o currículo – nos estudos da história, sociologia, psicologia, antropologia, economia e mais contextos em que se examine seu papel na aventura humana.

Esculhambação geral

Volta à carga Alaor Mendonça, acadêmico capixaba citado aqui na semana passada:

– Peço retificar o pós-dourado [que lhe atribuí; perdão!, caríssimo Alaor, perdão!, demais leitores], vejo pedante a titulação no mercado, papel ridículo. Cancelei tudo, porque não concordava com condução das matérias de maneira irresponsável.

            Depois ele retoma a crítica à imprensa, “no Brasil e em todo o mundo”, identifica na brasileira “complexos de vira-latas”, adeptos do “quanto pior, melhor” e conclui:

– Virou uma esculhambação geral sem ética e moral, que não me representa [nem reflete] minhas convicções de cidadão brasileiro.”

Fica pra próxima

Eu prometera na semana passada prosseguir na análise das perplexidades dos leitores-amigos Carlos Abreu e Géraux ante a irreal cena política brasileira, à luz de possíveis soluções aventadas por Jesus Ivandro Campos, brilhante colaborador desta coluna.

Peço vênia, e mais uma semana para concluir o processo – quero mais informação dos parceiros e tempo às conjeturas deste velho escriba. Tentarei, se contar com a paciência dos leitores, retomar o tema.

Convocação granberyense

No próximo sábado, 7 de outubro, os ex-alunos do Instituto Granbery residentes em Brasília e Goiás comemoraremos o aniversário de nosso Colégio juizforano em almoço no Clube Naval, como temos feito pontualmente nas últimas décadas.

Neste evento teremos homenagem especial a prestar, que melhor se fará se contar com a presença e participação de todos. Por favor, reservem a data e hora – lá estaremos a partir de 12h30.

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