Marco Antônio Pontes | Justiça dividida entre a borduna e o florete

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes – [email protected]


Há um conflito surdo, que a sociedade só percebe por manifestações episódicas, a dividir a cúpula do Judiciário brasileiro.
A clivagem não é política, ou pelo menos não se dá por opiniões nem preferências partidárias, afora exceções de praxe.
Discrepa-se por razões de natureza diversa, situadas além das posições ideológicas e aquém de considerações filosóficas.

 ‘Garantismo’

Se for possível encontrar palavra capaz resumir o que divide os doutos juristas, ela será ‘garantismo’.
Ressalvo, desde logo, que não pretendo ingressar nesta discussão, à qual não estou habilitado. Tento apenas traduzir em linguagem corrente os argumentos em curso no debate jurídico, num esforço de compreender o que se passa – não podemos, os leigos, ignorar a polêmica que de alguma forma nos afeta.

Ciência inexata

‘Garantismo’ é o apelido popular de um conceito assumido, primordialmente, por advogados de defesa, especialmente os que patrocinam acusados por crimes contra o patrimônio e a ordem pública.
A partir da legítima prerrogativa – e dever – de usar todos os meios legais em favor dos clientes, é habitual e compreensível que eventualmente exagerem.
Não sendo ciência exata, o direito costuma ensejar que um mesmo conjunto de fatos e circunstâncias conduza a determinada conclusão, ou a seu oposto: tudo depende da habilidade com que as partes manuseiam as ferramentas disponíveis.

Impunidade garantida

Levadas às últimas consequências, tais práticas podem adiar e até impossibilitar a prestação de justiça.
As normas jurídicas brasileiras, sobretudo as processuais, enredam-se num cipoal de difícil manejo pelos especialistas e improvável compreensão dos leigos. Os quais, entretanto, percebem claramente o resultado do processo: a impunidade que costuma premiar criminosos capazes de pagar bons advogados.

Fora da curva

E aqui chegamos ao atual estágio desta disputa.
Quando o processo do mensalão condenou, pela primeira vez, um grupo de poderosos políticos e seus empresários parceiros, o ministro Barroso identificou aquela ação penal como “um ponto fora da curva”.
Tinha razão, e haverá de comprazer-se por que a operação Lava a Jato inscreve outros pontos fora da curva da impunidade para crimes que já foram ditos ‘de colarinho branco’.

Nova história

Os malfeitores do petrolão, que assaltaram a Petrobrás e por pouco não a destruíram, pensavam-se acima da lei e contavam (ainda contam) com o ‘garantismo’ para subtrair-se à justiça. Esperavam protelar ad eternum os procedimentos, como de hábito.
Só não contavam com as inovações introduzidas no processo por juristas dispostos a reescrever essa história.

Pontos de inflexão

Sem me intrometer em seara alheia, registro como tais novidades foram assimiladas pela opinião pública: a aceitação da teoria dita “de domínio do fato”, a regulamentação da “colaboração [ou delação] premiada”, o uso desinibido da prisão preventiva, da busca e apreensão e da condução coercitiva marcaram pontos de inflexão na curva da prestação de justiça, na imagem do ministro Luís Roberto Barroso.
O que, inevitavelmente, haveria de causar reações.

Reação ‘garantista’

Exatamente contra essas novidades insurgem-se insuspeitados ‘garantistas’, encastelados na mais alta corte da Justiça.
Um ministro manda soltar o goleiro Bruno, condenado por homicídio particularmente cruel, outro consegue precária maioria contra a prisão preventiva, que acha “alongada”, do subchefe geral do mensalão e petrolão.

Ibsen na liça

O recente entrevero no Supremo Tribunal Federal teve até citação do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen pelo ministro Edson Fachin, relator da Lava a Jato, que queria manter a prisão preventiva de condenados em Curitiba, contra a opinião de seu colega Gilmar Mendes.
A sutileza literária do relator foi ineficaz, num primeiro momento, ante a dura campanha do colega. Fachin treplicou, na ocasião seguinte, ao remeter outro pedido de habeas corpus ao plenário do Tribunal, no qual a maior parte dos ministros parece respaldar-lhe as teses.

A espada perde

Esse entrevero – de um lado o erudito e sutil Luís Edson Fachin a esgrimir retórica elegante, de outro o respeitado constitucionalista Gilmar Mendes, que tem preferido armas menos sofisticadas no férreo combate à Lava a Jato e a quem a endosse – fez-me lembrar um episódio de José de Alencar em As minas de prata, que li na adolescência.

Um fidalgo português enfrenta, espada na mão, um índio com sua borduna. A arma que o lusitano empunhava com destreza logo fica em pedaços e o embate decide-se rapidamente: a força bruta vence a habilidade.

A espada vence

Autor de narrativas outrora ditas ‘indianistas’ (O guarani, Iracema), Alencar ressalta as virtudes do bon sauvage (vide J. J. Rousseau) e relata a generosidade do índio, que poupou a vida do fidalgo. Mas na sequência do romance, como na história do Brasil, o colonizador leva a melhor.
Quer dizer: nos termos em se coloca a trama, tecida no século xix, a espada derrota a borduna.

E agora?

Resta saber se Fachin, rigoroso com os réus e apenados da Lava a Jato como o foi Teori Zavaski, seu antecessor na relatoria, persistirá na esgrima elegante e será capaz de suplantar, com esquivas e manejo eficaz do florete, o retórico tacape com que Mendes ataca direta e pesadamente o que chama “excessos” da força-tarefa de Curitiba.

Erro conceitual

O que já se sabe é que os conflitos no Stf, quando derrapam dos bastidores ao proscênio, produzem manifestações lamentáveis.
O ministro Gilmar Mendes, ao apresentar o voto que tirou Zé Dirceu da cadeia, reivindicou para si e seus pares a condição de “supremos”. É grave erro conceitual.
Suprema é a instituição – perene, soberana e ainda assim limitada pela interdependência dos poderes da República. A qualidade não se aplica a cada um de seus transitórios integrantes, nem mesmo ao conjunto dos ministros.

Golpe no pé

Gilmar Mendes parece pouco à vontade ao erguer a borduna.
Jurista habituado aos altos cumes da Justiça, quando abandona a linguagem erudita dos tribunais e adota palavreado de botequim corre o risco de dar porretadas no próprio pé.
Assim foi no equívoco conceitual, que não faz justiça a sua brilhante carreira.

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