Marco Antônio Pontes | Lixão da história, limbo institucional

Tributo a Octavio Malta  (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes – [email protected]


Lixo da história

Vou usar mínimo espaço desta coluna e (espero) menor tempo nas conjeturas dos leitores ao comentar o arroubo autoritário de um certo general Mourão, embora o sobrenome evoque dolorosa lembrança, daquele que se autoapelidou “uma vaca fardada” após deflagrar o golpe militar de 1964.

Parece-me que o discurso extemporâneo tende a cair no esquecimento, ou no ridículo, se não lhe concedermos mais importância do que tem: um desabafo equivocado a descartar-se em lixão qualquer da história.

Anacronismo e contradição

O anacrônico pronunciamiento (vade retro!) foi ato isolado. Constrangeu o a maioria do auditório maçônico, motivou escassas manifestações dos ‘bolsonários’ de plantão e cabalmente desautorizou-se por quem lidera o Exército, o general Vilas Boas.

Mais deletérias, no entanto, foram as reações partidárias, no velho vezo ‘nós-contra-eles’, de intelectuais de esquerda que ainda se dizem petistas apesar das evidências em contrário e da óbvia contradição em termos: se é intelectual e de esquerda não pode continuar petista.

Voltarei ao tema (às agruras desses intelectuais, não ao ato insensato) na semana que vem.

Quarto poder

Alaor Mendonça, ele sim um intelectual estrito senso, de formação eclética – filosofia, direito, física, pós-doutor e professor da Universidade Federal de Vitória – faz dura crítica à imprensa brasileira:

– Vejo no passado recente (dos anos 1960 para cá) a imprensa fazendo o papel politico de Quarto Poder da República […], ditando regras de estado, comportamento, moral, ética.

Limbo institucional

Discordo em parte do eminente acadêmico mas aproveito-lhe a ‘deixa’ para estranhar a existência, mesmo implícita, de um eventual ‘quarto poder’.

As democracias ocidentais – ele mesmo observa – têm-se contentado com três desde que a Revolução Francesa testou com êxito as formulações de Locke e Montesquieu.

Entretanto, mais que uma hipotética ascensão da imprensa a tal condição – o que os jornalistas temos recusado há décadas, e aí reside minha discordância –, preocupa-me o limbo institucional em que se situa o Ministério Público.

Ator necessário

De fato é bastante confusa, a dizer o mínimo, a natureza institucional do Mp, na esfera federal como das unidades federadas e em suas, diria, ‘especializações’ no âmbito da Justiça Eleitora, do Trabalho e dos impropriamente chamados ‘tribunais’ de Contas.

Claro está que um dos mais expressivos avanços na conformação de estado inaugurada pela Constituição de 1988 é a autonomia do Ministério Público: antes um apêndice do Executivo, é hoje autônomo e destacado ator na cena político-institucional, parte da tríplice estrutura da Justiça ao lado do Judiciário e da advocacia.

Controles e limites

Há algo inconcluso, porém, na formulação dos papéis, atividades, âmbito e limites de ação do Mp, diversamente do que se constata em relação a seus parceiros no concerto da Justiça.

É inequívoca a organização do Poder Judiciário, mediante estrutura hierárquica que não tolhe mas tempera a autonomia de tribunais e juízes nas três esferas do estado – municípios, unidades federadas e União.

Por seu turno os advogados atuam conforme normas claras, universalmente aceitas e organizam-se em instituições também hierarquizadas, às quais o estado delega poder de supervisão e controle das ações individuais.

Sem invenções

Já a condição institucional do Ministério Público é imprecisa.

Ele não pertence ao Poder Judiciário mas é parte da Justiça, como tal interage com advogados sem filiar-se às entidades que os congregam, muito menos integra ou depende dos poderes Executivo e Legislativo.

Seria, então, um quarto poder?

Exorcisme-se, de pronto, a tentação de instituir mais uma ‘jabuticaba’.

Autonomia, e só

Persiste, assim, um problema a exigir solução.

À falta de pertinência institucional procuradores e promotores gozam de autonomia que, ao contrário do que ocorre com seus correspondentes na Justiça (juízes e advogados) e demais servidores do estado, não se limita nem se submete a qualquer controle, se não a Conselho Nacional integrado só por seus pares.

Dessa forma a autonomia confunde-se com independência, óbvia anomalia: dela não goza nenhum dos constitucionais poderes da República, sabiamente nomeados interdependentes.

Pós-república

Escreve-me Carlos Barroso de Abreu, velho amigo e primo ‘emprestado’ – oportuníssimo empréstimo que me fez a querida prima Sandra (saudades!…), ensejando-me excelente ‘aquisição’:

– Pelo andar da carruagem, carroça, carro de bois, você terá que usar mais que uma lauda semanal para nos brindar com as ‘Crônicas da Pós-República’.

Refere-se, Carlos, ao que escrevi há duas semanas sobre ‘pós-verdade’ e ‘pós-ficção’.

No primeiro caso é só o novo nome da mentira, fraude usada por Trump e seus êmulos aqui.

‘Pós-ficção’ é só invenção deste colunista, designa algo que aconteceu, sim, mas de tão inacreditável parece desvairado enredo novelesco.

Independência dependente

Associando-se a minha crônica destes tempos de non sense, Carlos usa muita sutileza e ironia para lamentar uma libertação que virou submissão:

– Passado mais de um ano da nossa independência daquele ‘descobridor’, presenciamos total dependência do estado e cidadãos de quem nos representa, investiga, julga… e “lidera”! (sic: as aspas na ‘liderança’ são enfáticas, sugerem dúvida da condução).

Caras-de-pau

Não farei pouco da inteligência dos leitores com tentativas de explicar a sutil ironia. Permito-me só uma observação, curta e grossa:

‘Nunca antes na história deste país’ viram-se tamanhas caras-de-pau, um ex-presidente já condenado e réu em mais sete processos a dar lições de moral urbe et orbe, um presidente sob avassaladoras suspeitas converter-se em acusador de quem o acusa… e com apoio de ministro da Corte suprema!

É cult; e assustador

O jornalista mineiro Geraldo Lúcio de Melo, aliás Géraux, velho e querido amigo, trata de assuntos paralelos mas alude a uma das personagem das notas anteriores, o ex-presidente enroladíssimo com polícia e tribunais. Remete-me, Géraux, à revista Cult, edição de 17 deste mês, cuja capa “fala por si, é assustadora!” porém recomenda a leitura:

– Mesmo não concordando, vale sempre a pena saber do outro lado”.

Sem autocrítica

            – Este é o pessoal que fala ainda em ‘golpe’ contra a ‘presidenta’. Nenhuma autocrítica. Engraçado… – espanta-se Géraux.

E em vez de concluir, pergunta: – [Seria] Apenas para marcar posição, como antigamente? Brigar por espaço nos corações e mentes dos espectadores? – sobretudo dos remanescentes seguidores?, acrescento.

Depois eu conto

Encontrei respostas à pergunta e dúvidas de Géraux, que compartilho, em mensagem que me chegou em seguida. Já li, assimilei e prometo comentar na próxima edição desta coluna, depois de melhor pensar o assunto.

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