Tributo a Octavio Malta – (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes – [email protected]
Trânsfuga ou agente duplo?
Imagine-se o leitor ante uma obra de ficção construída em torno do enredo que resumo a seguir.
Primeiro capítulo: um membro do alto escalão de organismo do estado, encarregado de defender a sociedade e propor punição a quem a ameace, muda de lado e vai trabalhar para os transgressores da lei.
Segundo capítulo: sugere-se que não teria sido bem assim, na verdade o servidor talvez fosse desde sempre ‘agente duplo’, servisse eficientemente aos dois senhores enquanto operava para si próprio – e ninguém percebia!
Inverossímil
O leitor haveria de abandonar o livro: o enredo não faz sentido, carece de verossimilhança. Como o estado?, com seus múltiplos organismos de controle, poderia cair em tal engodo?
E eu concordaria: a história parece frustrada tentativa de ‘roman noir’, filme ‘b’ mal concebido e pior realizado, peça de aspirante a dramaturgo que nunca chegará lá, ademais encenada por troupe de canastrões.
Pós-ficção
Entretanto, leitor, isso aconteceu. Nestes tempos em que a mentira tem sido chamada de pós-verdade haverá lugar para a pós-ficção, fruto de imaginação tão desvairada que ao final se aproxima da realidade – pois os extremos não se tocam?
Mas talvez eu esteja desnecessariamente a inventar e baste recorrer a outro lugar-comum: a realidade supera a ficção.
Dormindo com o inimigo
Efetivamente aconteceu no Brasil e foi notícia nesta movimentada semana que ora finda.
Um procurador da República, destacado membro da cúpula do Mpf (dito o braço-direito do chefe), demitiu-se e cinco dias depois militava no lado oposto da trincheira, em escritório de advocacia que assessorou a inusitada colaboração do grupo empresarial J & F com o Ministério Público; colaboração regiamente premiada, diga-se. E mais: suspeita-se de que o serviço ao ‘inimigo’ conviveu com o exercício da função pública.
E ninguém percebeu! – reitere-se o espanto.
Contando dinheiro
Na mesma semana o leitor incrédulo presenciaria outro episódio tão ou mais improvável. Uma montanha de dinheiro foi descoberta em apartamento na Bahia, catorze malas e caixas que demandaram dois camburões da Polícia Federal para transportá-las e horas de aplicado manuseio, por seus agentes, daquelas maquininhas de contar cédulas até encontrar o total: coisa de R$ 51 milhões, a maior apreensão em dinheiro já realizada no Brasil.
Lesse tal disparate num conto policial o leitor faria pouco caso: ninguém guardaria tamanha fortuna em dinheiro nem o deixaria assim ao léu, num apartamento vazio.
Pois alguém guardou e deixou.
Bunker e banco
E adivinhem? quem morava bem perto daquele apartamento (para Cristiana Lobo, “um bunker que parecia um banco” – GloboNews, 05.09), pertencente a um ‘alaranjado’ amigo?.
Justo aquele ex-ministro de Lula, Dilma e Temer, também ex-diretor da Caixa Econômica, que ainda não fora pego com a boca na botija se não quando defenestrado do atual governo porque pressionava um colega a coonestar maracutaia imobiliária em Salvador.
E suas impressões digitais foram encontradas no tal ap/bunker/banco.
Insinuações malévolas
Tem mais non sense; o improvável é corriqueiro nestes tempos destituídos de senso.
Notórios transgressores da lei que se deram muito bem ao confessar culpa e, no processo, habilmente selecionaram os comparsas que quiseram entregar, ‘descuidaram-se’ e gravaram a si próprios. Depois, também ‘sem querer’, entregaram a comprometedora conversa às autoridades.
Além de confessarem crimes ‘esquecidos’ até então, ‘de passagem’ deixaram muito mal seus interlocutores no Ministério Público e insinuaram cooptação de três ou quatro, talvez cinco ministros do Supremo Tribunal Federal.
Nova Iorque ou Papuda
A presidente do Stf reagiu pronta e veementemente, como é de seu feitio e exigiu – nada menos que exigiu – do Ministério Público e da Polícia Federal “imediata” (sic) averiguação das insinuações.
Na subsequente reunião da Corte, estranhamente esvaziada, foi apoiada pelo decano Celso de Melo e pelo colega Luís Fux, que sugeriu ao presente (e constrangido) procurador geral a transferência de seus ‘colaboradores’: do exílio em Nova Iorque para Brasília, no presídio da Papuda.
Prazos confortáveis
Oficialmente o Ministério Público e a Polícia Federal não responderam de pronto, como deveriam, à cobrança da mais alta autoridade do poder Judiciário. Mas a imprensa, sem citar fontes, informou que a Polícia Federal tem trinta dias para atender à determinação superior. O prazo do Ministério Público é ainda mais confortável: sessenta dias.
Tragicomédia
Presenciamos recentemente outros episódios de romance policial mal engendrado, filme ‘b’ estapafúrdio ou destrambelhada ópera bufa, a sugerir total desarticulação da tragicômica cena brasileira: um presidente da República recebe em casa, clandestinamente um empresário altamente suspeito; o Ministério Público Federal acolhe, acrítica e precipitadamente as denúncias do mesmo empresário, a partir delas constrói um caso contra o presidente; por isso e entreveros análogos, um ministro do Stf troca desaforos com o procurador geral da República.
Alto nível
O próprio presidente envolve-se em bate boca (pela imprensa!) com um dos mais ricos empresários brasileiros, o tal que recebera em casa: chama-o bandido, apelida-o “delator geral da República”. O indigitado não deixa por menos e diz que o presidente é o “ladrão geral” idem.
Quanta elegância!
Tudo como dantes; ou quase
E a acrescentar paradoxos a esta quase típica semana brasileira, aquele ex-presidente provável futuro presidiário recebeu mais três petardos. Tudo como sempre, dir-se-ia, não fosse um dos tiros desferido por antigo companheiro, homem-forte de seus primeiros anos no Planalto e ex-primeiro-ministro da ‘poste’ que o sucedeu.
‘Satélite’ errado
Li em Veja, edição datada de 9 de setembro: “Enquanto era um satélite soviético, a Ucrânia…”. A revista errou na história e geografia.
A Ucrânia integrava a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, como parte do estado multinacional liderado pela Rússia, ao lado de Estônia, Letônia, Lituânia, Bielorrússia (atual Belarus), Azerbaijão, Armênia, Geórgia…
‘Satélites’ era a denominação, algo pejorativa, com que a mídia do ocidente referia-se aos estados também socialistas da Europa oriental e central: Polônia, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental, Hungria, Romênia, Albânia, Bulgária, Iugoslávia.
Quem? na sombra
“Quem imagina que a Operação Lava-Jato vai acabar […] pode tirar o burrinho da sombra.”
Encontrei a expressão curiosa em artigo de análise política (aliás excelente) veiculado no Correio Braziliense de quarta-feira passada. Só que o colunista errou de montaria e circunstâncias.
A expressão popular, a significar algo como ‘melhor não esperar, não vai acontecer’, é “pode tirar o cavalo (cavalinho) da chuva”.
Provavelmente o articulista fez uma falsa associação de ideias, ao lembrar outra expressão (essa mui popular em Goiás): “Estar com o boi na sombra” – ou seja, tê-lo confortável, protegido; quer-se dizer, assim, que o cidadão tem um bom e seguro patrimônio.
Seja o primeiro a comentar on "Marco Antônio Pontes | Realidade ou ficção de péssima qualidade?"