Uma análise da condenação do ex-presidente Lula pelo que ela efetivamente diz respeito: o caráter criminoso da concessão de vantagens indevidas

Seja pela inédita condenação judicial e provável prisão de um ex-presidente da república, seja pelos inegáveis desdobramentos que trás para a disputa pela sucessão do presidente Michel Temer, o julgamento do recurso da defesa do ex-presidente Lula, ocorrido nesta quarta-feira (24), foi acompanhado por juristas, políticos, adversários e aliados do petista como um dos eventos mais importantes do ano.

O que se viu – desde a fase de inquérito, passando por suas manifestações ainda no julgamento na primeira instância, e até mesmo nas alegações finais e na sustentação oral no recurso -, foi uma estratégia da defesa que parecia ter como foco não o esforço em refutar – no que diz respeito ao mérito, ao conteúdo -, as provas documentais, testemunhais e periciais que conferiam uma sólida fundamentação às acusações que pesavam sobre o ex-presidente, mas o empenho em construir uma narrativa que pudesse ser reproduzida pela militância petista, pelos “blogs sujos” e outros aparelhos do PT e de seus satélites, e pelos aliados em discursos nas casas legislativas e nos palanques eleitorais do pleito que se aproxima, segundo a qual todo o processo judicial ao qual Lula estaria sendo submetido não passaria de um mecanismo de lawfare, fruto de um suposto conluio entre o Judiciário e setores da imprensa, com o único objetivo de impedir sua participação nestas eleições de outubro.

A decisão unânime confirmando a condenação do ex-presidente Lula tende a significar, nos termos da chamada Lei da Ficha Limpa, que ele estaria impedido, por enelegível, de participar das eleições presidenciais de outubro. São os efeitos regulares de uma legislação já declarada constitucional pelo STF, sancionada pelo próprio ex-presidente Lula, e que tem sido importante mecanismo para encerrar a trajetória política de muitos dos que são costumazes no emprego da artifícios criminosos para aquisição de ativos políticos e econômicos, inclusive com fins eleitorais.

A exclusão do processo eleitoral de alguém declarado como corrupto pela justiça, após definitivamente encerrado o juízo de culpabilidade, é o mecanismo estabelecido pela Constituição Cidadã – tendo como critérios os da probidade administrativa e da moralidade para o exercício do mandato eletivo -, visando prevenir que os próprios instrumentos da democracia sejam corrompidos e a estrutura do Estado tomada de assalto por aquelas que seriam verdadeiras quadrilhas travestidas de partidos políticos.

É preciso ter claro que a verdadeira fraude, o verdadeiro golpe, seria ignorar o mandamento constitucional, que estabelece a definição de casos de inexigibilidade a fim de proteger a normalidade e a legitimidade das eleições, em nome de um projeto de poder com viés claramente totalitário, numa manobra típica dos que hoje, mais do que nunca, estão dispostos a “fazer o diabo pra ganhar a eleição”.

Um dos principais estratagemas empregado neste sentido tem sido o de reiterar a frágil e insustentável tese segundo a qual, mesmo diante das acusações de ocultação de patrimônio e lavagem de dinheiro, o só fato do famoso triplex no Edifício Solaris estar escriturado em nome da construtora OAS geraria uma presunção “mais que absoluta”, irrefutável talvez, de que o ex-presidente Lula e sua família não poderiam ser seus verdadeiros proprietários.

Considerar que a observância das exigências do Direito Civil para as transações envolvendo bens imóveis seria necessária para caracterizar o recebimento da vantagem indevida nos crimes de corrupção – além de ignorar o fato de que o só usufruto e a livre disposição de um bem, idependente da titularidade formalmente registrada em cartório, pode ser considerado uma vantagem ilícita -, equivale a adotar critérios de verdade formal que só interessam às organizações criminosas, onde na sua grande maioria valem os acordos verbais e, por óbvio, se evita a produção de documentos que possam levar a comprovação da conduta delituosa.

Na contramão daquilo que vive a repetir a miliância petista, segundo quem não haveriam provas que associassem o triplex ao Lula, a perícia da Polícia Federal em documentos apreendidos na casa do ex-presidente e na sede da Cooperativa Habitacional dos Bancários (BANCOOP) atestam que – apesar das rasuras e adulterações feitas provavelmente com o objetivo de falsear a verdade – os documentos assinados pela ex-primeira dama Mariza Letícia e pelos representantes da Cooperativa, datados de 2005, já atribuíam à família do ex-presidente Lula o tríplex que hoje o petista tenta, a todo custo, dizer não ser seu.

O que precisa ser, de fato, investigado são as razões pelas quais a família do então presidente Lula pagou à BANCOOP apenas as parcelas referentes a um apartamento tipo – tres vezes menor e bem mais barato – se os documentos comprovam que a eles seria atribuído uma cobertura triplex. Tudo isso fica ainda mais “mal explicado” quando lembramos que se deu em meio a um esquema fraudulento, que lesou milhares de famílias, onde sobram suspeitas de desvio de recursos e de enriquecimento ilícito de pessoas ligadas ao PT, ocorrido numa cooperativa na época dirigida por João Vaccari Neto, o ex-tesoureiro petista preso sob acusação de ser um dos condutores da engrenagem de corrupção montada para denar recursos públicos para enriquecer “companheiros” e financiar campanhas eleitorais dos aliados do Planalto durante os governos do PT.

Exigir que, na apuração de esquemas de corrupção, sejam apresentadas provas documentais que, pelo seu conteúdo, por si só, comprovem os exatos termos dos acertos criminosos de concessão de vantagens em troca de favorecimento é de um idealismo ingênuo que em muito se confunde com o cinismo. Esse é um nivel de formalismo que apenas interessa ao mercado milionário, que movimenta verdadeiras fortunas em honorários de assessoria jurídica e defesa técnica, dedicado à garantia da impunidade dos que comandam estas verdadeiras organizações criminosas formadas pelo conluio entre empresários e polítícos em detrimento dos cofres públicos.

Por mais competente que tenham sido Lula e seus advogados na tentativa de fazer do julgamento um palanque a ser utilizado politicamente pelo petista, não lograram o mesmo êxito em refutar as provas e indícios – termo aqui empregado em seu sentido técnico, do artigo 239 do Código de Processo Penal, e não como sinônimo de “prova fraca, leve, superficial e não cabal” como alguns querem fazer parecer – que levam à conclusão de que havia um acerto para a concessão ao ex-presidente de benefício patrimonial estimado em mais de R$ 2,5 milhões, sem qualquer justificativa lícita para tanto.

A própria estratégia adotada pela defesa do ex-presidente Lula, em especial nos seus depoimentos, era sintomática de quem buscava se valer mais da dificuldade na produção de provas neste tipo de atividade criminosa do que da franca disposição de comprovar a lisura de seus atos. Apesar das insistentes intervenções de seus defensores visando evitar que Lula fosse confrontado por elas, as contradições em seus depoimentos eram evidentes, saltando aos olhos de qualquer observador um pouco mais atento, sendo ignoradas apenas pela cegueira conivente de parte da militância petista.

Ao confrontarmos os depoimentos do ex-presidente Lula e os do delator Leo Pinheiro, da OAS, que serviu de fundamento inicial da denúncia, quanto aos critérios de valoração da prova – considerando a densidade, consistência interna e externa, e, principalmente, a existência de prova de corroboração -, resta evidente, no abismo qualitativo que existe entre eles, que se render à estratégia e aos argumentos da defesa equivaleria a adotar critérios de verdade formal completamente desconexos da busca daquilo que se convencionou chamar de verdade real.

O ex-presidente Lula afirmou que jamais houve a intenção de adquirir o referido triplex, o que não é consistente com os documentos apreendidos e periciados que comprovam esta pretenção, já na aquisição dos direitos sobre a unidade do Residencial Mar Cantálbrico, ainda sob responsabilidade da BANCOOP. Também apresentou versões contraditórias em juízo e durante depoimento à autoridade policial sobre a decisão de não adquirir o triplex que lhe teria sido oferecido por Leo Pinheiro, sendo que nenhuma delas é compatível com informações prestadas pelo então presidente, no ano de 2010, em resposta a uma reportagem do jornal O Globo, ou com uma nota oficial divulgada pelo Instituto Lula em dezembro de 2014, sendo também estas contraditórias entre si.

As mensagens e registros com autenticidade comprovada, além de outros depoimentos, confirmam as afirmações de Leo Pinheiro, de que esta cobertura triplex jamais foi disponibilzada para venda e que, deste 2009, quando a OAS assumiu o empreendimento, era objeto de acompanhamento diferenciado quanto ao andamento das obras, inclusive de personalização, sempre sob a justificaiva de o imóvel estaria reservado para a família do ex-presidente Lula. Essa versão, segundo a qual teria sido João Vaccari Neto, então dirigente da BANCOOP, a lhe confirmar a destinação do triplex, é compatível com a omissão da família do ex-presidente na lista dos cooperados cuja assinatura do termo de opção, entre o novo contrato ou o ressarcimento dos valores pagos, encontrava-se pendente, encaminhada pela cooperativa à construtora na transferência do empreendimento, apesar de eles jamais terem formalizado esta opção, e sem que nunca tivessem sido cobrados pela OAS a formalizar a desistência ou retomar o pagamento das parcelas.

Destaque-se que o ex-presidente Lula não soube explicar porque não realizou a opção no prazo estabelecido ou sequer, mesmo tendo a OAS vendido a terceiro, já em 2009, a unidade tipo que segundo sua defesa lhe seria atribuída no empreendimento, porque somente em 2016, após a divulgação do conteúdo do depoimento em que Leo Pinheiro lhe imputa a propriedade do triplex, decidiu

formalizar a desistência e requerer o ressarcimento dos mais de R$ 209 mil pagos pelo contrato com a BANCOOP,

Outra contradição importante do ex-presidente Lula se verifica quando, em juízo, afirma que nem ele, nem a sua esposa, teriam solicitado ou sido informados sobre a reforma no apartamento, quando, em seu depoimento à Polícia Federal, alegou como motivo para a desistência da aquisição do triplex o fato de que, numa segunda visita, dona Mariza Letícia ter constatado que “nada tinha sido feito” em relação às reformas do imóvel. Ao admitir, caindo em contradição, que ex-primeira dama lhe fez esse comentário – algo que somente é compátivel com a versão segundo a qual ela teria conhecimento sobre a reforma executada -, Lula acaba conferindo mais credibilidade ao depoimento de Leo Pinheiro, segundo o qual este projeto foi submetido previamente à aprovação dele próprio e de sua esposa.

Ressalte-se que a Tallento Construtora, contratada para realizar a tal reforma, confirma que, após concluídas, as obras foram submetidas à dona Mariza Letícia, para aprovação.Esse tipo de customização – promovidas para atender um cliente específico, não para incrementar seu valor de venda para um público indeterminado -, constitui um produto diferenciado, comercializado sob o nome de OAS Exclusive, com custo adicional – especialmente quando consideramos que as notas fiscais e faturas comprovam uma despesa de mais de R$ 1,2 milhões para a OAS com esta personalização – e prazo de opção até determinado estágio do empreendimento, disponibilizado para os já adquirentes de um imóvel e não de maneira gratuita para um apenas possível comprador.

Outra curiosidade a ser percebida na análise das faturas e notas fiscas relativas à personalização do triplex é que elas comprovam que os móveis e eletrodomésticos adquiridos na Kitchens e na Fast Shop foram comprados, pela OAS, conjuntamente com aqueles que, até agora sem uma explicação lícita para tanto, foram destinados ao sítio no município de Atibaia (SP), cuja propriedade igualmente é atribuída a Lula e em relação ao qual, em processo próprio, também são apuradas acusações de concessão de vantagens indevidas ao ex-presidente.

Apesar dos artifícios empregados pela de defesa do ex-presidente Lula – que em muito se confunde com a estratégia do PT e seus aliados para construção de uma narrativa a ser empregada nas eleições gerais de outubro -, de fazer parecer que a presunção de inocência imporia ao parquet o ônus probatório num grau tão absoluto de certeza que, a prática, seria inatingível, e, com isso, difundir sua visão jurídica solipsista segundo a qual Lula teria sido condenado sem provas, a análise do conjunto probatório e do ratio decidente, da parte dispositiva, mostra que princípio do in dubio pro reo foi rigosoramente observado quando – tanto na prolação da sentença pelo juiz singular quanto em sua confirmação, no mérito, pelo colegiado – na emissão do juizo condenatório “para além da dúvida razoável”, restaram superadas todos os questionamentos e todas as dúvidas concreta levantadas pelo acusado e seus defensores no exercício da ampla defesa e do contraditório.

Ao fim, apesar do tema ter sido mencionado pelos membros do ministério público e, obiter dictum, também no voto de alguns dos desembargadores na apreciação do recurso, temos que esta condenação de Lula, que se deu em total respeito ao devido processo legal, não apreciou em momentou algum se era, ou não, o ex-presidente artífice central do esquema de corrupção que vitimou a Petrobrás – mesmo porque o julgamento dos crimes relacionados à eventual formação de organização criminosa, por envolver parlamentares e outras autoridades com foro de prerrogativa de função, serão processados perante o Supremo Tribunal Federal -, mas sim as circunstâncias e as provas que, para além da dúvida razoável, demonstram que o presidente Lula, ao menos, aceitou tacitamente a promessa de vantagem patrimonial – correspondente a valores consideráveis, que superam R$ 2,5 milhões – em razão da função pública por ele exercida e sem que houvesse o apontamento de uma causa lícita para tanto.

É disso que trata o crime de corrupção passiva,e é preciso que seja este o referencial para a análise de uma decisão judicial, à luz da independência do poder judiciário e dos princípios norteadores de um estado democrático e de direito. Condicionar uma condenação criminal, e os efeitos que lhe são próprios, a critérios de natureza essencialmente político-eleitorais – como os índices de intenção de votos ou juízos de aprovação e de mérito das políticas sociais adotas durante seu governo – seria reconhecer a existência de indivíduos que, por sua condição histórica pessoal, estariam acima da lei.

* Saulo Batista é especialista em orçamento e políticas públicas, diretor de relações governamentais da Associação Nacional do Transportador e dos Usuários de Estradas, Rodovias e Ferrovias (ANTUERF), secretário-executivo da União Geral dos Trabalhadores (UGT) e membro do Secretariado Nacional de Relações Trabalhistas e Sindical do PSDB.

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